O Estado suprirá todas as necessidades do contingente populacional protegido em seu âmbito. Assegurará a todos condições mínimas de salubridade, tal como água tratada, dignas condições de saneamento básico, acesso irrestrito ao sistema de saúde e garantia de uma prolongada expectativa de vida... Seria até poético, se fosse verdade. O que se apresenta, na realidade, é um quadro bastante distinto desta ainda utópica conceituação de assistência estatal.
Mas, é certo, não podemos generalizar esta questão. Falemos então quanto aos Estados mais pobres. Ao Estado brasileiro, stricto sensu, está incumbida a tarefa constitucional da prestação, à população, dos direitos e garantias fundamentais a ela inerentes. Claro nos está que a saúde pública enquadra-se no rol destes assegurados “benefícios”.
O fato é que nem tudo está como deveria. Rotineiramente podemos ouvir notícias através dos veículos de comunicação que ditam exatamente a carência que o povo brasileiro sofre de saúde. O contato com tal realidade torna-se físico quando precisamos, pessoalmente, dos serviços oferecidos pelo Estado. O que notamos, desta forma, é uma bruta falta de recursos e, conseqüentemente, de operações; o sistema único de saúde perece, e perecem juntos aqueles que dele dependem.
É lamentável que o direito à vida, consagrado pela Magna Carta, seja tratado de tal maneira. É lamentável vermos filas com um número incomensurável de pessoas esperando por uma consulta médica. É inconcebível percebermos a aviltante quantidade de cidadãos hospedados nos corredores dos hospitais públicos, sem nenhuma discrição e sem espaço para reivindicação. Mas e a dignidade da pessoa humana? Como, então, falar em direito à intimidade em circunstância tão degradante, em que pacientes repousam durante dias em condições adversas de hospitalidade?
Esperar meses por exames, ou até anos por uma consulta com um especialista é, em muitos casos, algo que está além da faculdade vital humana. Muitas vidas se perdem pela incapacidade hospitalar, clínica e ambulatória encontrada em casos de necessidades. Muitas pessoas perdem suas vidas nas filas dos hospitais ou mesmo em casa, esperando por um telefonema em que lhe comuniquem o aparecimento de uma vaga para exame.
Quando falamos nas regiões mais pobres do país, a situação se agrava ainda mais. Exemplo típico são as pequenas cidades do sertão nordestino, situadas no interior de seus Estados (as províncias). Caso recente no noticiário foi o de um homem que quase perdeu sua vida pela ausência, na sua região, de médico cardiologista que lhe socorresse. A junta médica especializada se concentrava na capital do Estado, a centenas de quilômetros do interior abandonado. Cidades como essa não possuem estrutura mínima de saneamento básico, como água tratada e sistema coletor de esgoto. Isso dificulta a prevalência de uma saúde estável, uma vez que predominam doenças causadas por verminoses e outras do ramo nutricional, aumentando a porcentagem de mortalidade infantil, e freando a expectativa de vida dos mais velhos.
As unidades de saúde, tanto maiores quanto menores, em escala hierárquica, sofrem com a falta de profissionais capacitados, e o que se vê, muitas vezes, é a aplicação de uma maciça carga de trabalho sobre o ombro de poucos profissionais, o que aumenta a deficiência do sistema. Em muitos casos, o paciente é vistoriado apenas por enfermeiros, não alcançando o diagnóstico necessário oriundo de um médico. Nestes casos, habitualmente, um simples “paracetamol” é a saída, o que acaba por negligenciar a real situação clínica do paciente, podendo lhe causar até uma piora repentina.
É fácil observar que a demanda populacional pela saúde é maior que a oferta da mesma pelo governo. As entidades públicas prestadoras deste serviço têm ação restrita: ora pela falta de verbas ou equipamentos, ora pela excessiva carga humana demandante do serviço. Vale aqui citar o trabalho realizado pelo LEPAC, o laboratório da Universidade Estadual de Maringá, que lida com estudos e pesquisas em análises clínicas, oferecendo a realização de milhares de exames mensais e atendendo um aglomerado de centenas de pessoas por dia – não só de Maringá, mas de toda a região noroeste do Paraná.
Quanto à capacidade orçamentária do brasileiro, a Constituição Federal nos apresenta translucidamente a competência do salário mínimo. Nem tão transparente nos é a realidade: suprir as necessidades vitais básicas individuais e as de sua família, dentre elas moradia, educação, alimentação, higiene, transporte, previdência social e saúde, é algo praticamente irrealizável. A renda ínfima que sustenta milhões de brasileiros é absurdamente incompatível com os custos provenientes do acompanhamento médico e farmacêutico, quando reclamados juntos à iniciativa privada. Basta acompanhar o ritmo de vida que as pessoas mais pobres levam para se averiguar a impossibilidade de arcar com tal ônus.
A iniciativa privada hoje, aliás, desempenha importante função na sociedade. Apesar de grande parte da população não ter acesso a ela, muitos convênios são firmados entre as mesmas e empresas empregadoras de mão-de-obra, assim também para com o governo, que se utiliza de seus serviços para suprir a inexistência de órgãos públicos de saúde competentes para determinadas funções. Logo, pode-se conceber que tais usuários de serviços privados pagam duas vezes pela saúde: os impostos recolhidos pela rede pública mais a contribuição concedida à empresa privada.
Ademais, muitos profissionais da saúde são atraídos para trabalhar no campo privado, devido às melhores condições de labor e retribuição salarial superior àquela oferecida pelo Estado. Essa é uma das causas da imensa deficiência no quadro de funcionários do sistema único de saúde. Essa falta, acrescida ao excessivo número de demandantes, leva a saúde pública a uma situação de crise.
Pensando nesta situação, uma das saídas encontradas pelas autoridades da Secretaria Municipal de saúde de Maringá está sendo a criação de mutirões, visando diminuir sensivelmente as filas de espera por especialistas. O primeiro realizado foi com profissionais da oftalmologia quando, em parceria com o SUS, os médicos devidamente capacitados atenderam em seus consultórios pacientes necessitados. Os próximos mutirões previstos são de ortopedia e dermatologia, sendo esta última a detentora de um dos maiores números de arrolados para consulta.
A primeira experiência foi satisfatória, mas permanece a dúvida quanto às posteriores, por se tratarem de ramos da medicina que, muitas vezes, exigem tratamento prolongado. Assim, uma simples consulta, sem a continuidade cabida, seria quase que inútil.
Mesmo que haja sucesso com as medidas mencionadas, ainda restarão inúmeras brechas no sistema a serem tapadas. Como último exemplo vale citar, falando em Maringá, da atuação de profissionais da Urologia na rede pública. Atualmente, o SUS conta com um único médico para lidar com os enfermos, que soma seguramente, em toda região, mais de quinhentas mil pessoas. Um outro profissional do ramo atua apenas com os casos mais graves, relacionados ao câncer de próstata, e ainda assim dedica cerca de quatro dias por mês para tal.
Não caberia aqui discutirmos sobre a falta de ética ou não dos médicos que abrem mão da excessiva demanda da rede pública para atuarem em ramos privados. Tal questionamento refere-se ao Estado, que oferece baixos salários e condições desfavoráveis de trabalho para tais profissionais, condenando assim o SUS a um descaso quase que total.
Concluindo: a situação é realmente preocupante. E é difícil falar em direitos sociais mediante quadro social deplorável. E ainda ficam dúvidas no ar quanto à origem do problema: incompetência administrativa? Falta de recursos? Afinal, para onde vão, e como são aplicados, no caso concreto, os recursos do orçamento da seguridade social, obtidos mediante ação tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios?
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas. Literalmente, maravilhoso; na prática, uma vergonha.
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Escrevi este texto há um ano e meio, para o extinto jornal do CA de Direito, “Iuris et de Iure”. Até hoje não sei porque, mas foi cortado na última hora.
A propósito, hoje o SUS de Maringá não conta com NENHUM urologista. Quem estava na fila para dermatologista naquela época, provavelmente ainda não foi atendido.
Um comentário:
Seu blog é show de bola..
Que Deus te abençoe diariamente..
Abraço
Diego Batista
http://conversandocomiave.blogspot.com/
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